……garantir ao cidadão, usuário desse serviço público, a possibilidade de se defender de serviços de má qualidade – é o caso da audiodescrição, por exemplo, que até hoje não está disponível e os cegos não têm para quem reclamar. Nem um bendito 0800! –
O "Democracia Socialista" entrevistou João Brant, mestre em regulação e políticas de comunicação pela London School of Economics and Political Science, e integrante da coordenação executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
DS: Como você descreveria o atual quadro das comunicações de massa no Brasil hoje? Em especial, do sistema de radiodifusão, que são concessões públicas?
JB: O cenário é de concentração e exclusão, já que a maior parte da sociedade não tem mecanismos para fazer circular seus pontos de vista.
Pra se ter uma ideia, a soma da participação das quatro primeiras emissoras de TV é de 83,3% no que se refere à audiência, e 97,2% no que se refere à receita publicitária.
O sistema público de comunicação, que poderia fazer frente a essa realidade, ainda é incipiente. Só em 2007, o Brasil se colocou o desafio de criar uma TV pública de abrangência nacional, e ela ainda tem um alcance muito restrito, com dificuldades concretas para ampliá-lo.
O conteúdo dos meios de comunicação reflete esse quadro. A diversidade do Brasil não encontra espaço nos grandes meios. Ao contrário, há um tratamento estereotipado e discriminatório especialmente em relação a mulheres, negros e homossexuais, e as pessoas que se veem atingidas por essa programação não têm meios de se defender.
DS: Em termos de regulamentação, que iniciativas precisam ser tomadas para avançar na direção de uma comunicação democrática?
JB: Hoje a realidade é de um sistema predominantemente comercial, concentrado e excludente. A lei que trata das questões de rádio e TV é de 1962, do tempo da TV em preto e branco. A complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal, que poderia equilibrar um pouco o poder das grandes redes, está na Constituição desde 1988, mas nunca foi regulamentada.
O artigo 220 determina a proibição direta e indireta a monopólios e oligopólios, mas as únicas regras que existem sobre isso são da década de 60, e não consideram fatores-chave como audiência e investimento publicitário, por exemplo. No mesmo artigo 220 está prevista a criação de meios legais para a população se defender de programação que atente contra os princípios constitucionais – outro ponto que segue sem qualquer regulamentação.
Para o artigo 221, que busca garantir espaço no rádio e na TV para programas produzidos regionalmente e para a produção independente, existe um projeto de 1991, mas ele está engavetado no Senado.
Veja que estou falando só de pontos que estão na Constituição!
Para se pensar o conjunto da regulamentação do setor, deveríamos incluir, além disso, regras democráticas para concessões de rádio e TV e para as rádios comunitárias, promover a pluralidade e a diversidade nos meios de comunicação e, mais do que tudo, garantir instrumentos de participação popular na definição das políticas e no acompanhamento do setor.
DS: Em outros países de tradição democrática esse já é um debate superado, não?
JB: Sem dúvida. Em muitos países há órgãos reguladores que incidem sobre questões de concentração de mercado e questões de conteúdo. Há regras que incentivam a pluralidade e a diversidade – inclusive a pluralidade política –, protegem o público infantil, e mecanismos para a população se defender de programação que atente contra a dignidade humana. No Brasil, nem um órgão regulador independente nós temos, já que a Anatel não é responsável pela regulação do setor de radiodifusão.
Só para dar um exemplo, em 2004, o FCC, que é o órgão regulador nos EUA, queria diminuir os limites à concentração (que, mesmo com as mudanças, seriam ainda mais fortes que os do Brasil). Houve pressão popular contra a medida e até os republicanos votaram contra no Congresso. Isto é, medidas que por aqui são consideradas radicais, lá são defendidas até pelo partido da Sarah Palin!
DS: Na Argentina, por exemplo, a reforma da legislação sobre comunicação foi polêmica porque houve resistência dos empresários. Já há algum balanço desse processo lá?
JB: Os empresários vão sempre resistir à mudança do cenário em que eles reinam sozinhos, mas o processo da Argentina foi positivamente exemplar. Ele é fruto da combinação de setores sociais organizados com vontade política do governo.
A lei aprovada cria condições para a ampliação do exercício da liberdade de expressão e está amparada em toda a legislação internacional de direitos humanos. Ali estão tratadas todas as questões importantes para a regulação do setor audiovisual. É fundamental, por exemplo, a reserva de um terço do espectro eletromagnético para meios de comunicação sob controle de entidades sem fins de lucro. Essa medida, tratada por aqui como se fosse um absurdo, é apoiada pelos relatores de liberdade de expressão da OEA e da ONU.
DS: A Confecom acumulou no sentido de propor marcos regulatórios e revisões da atual legislação?
JB: A I Conferência Nacional de Comunicação teve 633 propostas aprovadas (sendo 569 delas por consenso ou com mais de 80% de votos favoráveis) que determinam uma agenda bastante progressista para o setor da comunicação. Foram aprovadas propostas sobre os mais diversos temas, desde o reconhecimento da comunicação como direito humano até o combate à discriminação de gênero, orientação sexual, etnia, raça, geração e de credo religioso nos meios de comunicação, passando por novos critérios para concessões e definição de limites para concentração, além da definição do acesso à internet banda larga como direito fundamental. Também foi aprovado um Conselho Nacional de Comunicação como instância central para a formulação e o exercício do controle social das políticas de comunicação.
DS: Em relação às políticas de acesso à banda larga, o quadro é melhor?
JB: Não muito. A internet é um espaço aberto e democrático, e tem contribuído para a democratização. Mas o Brasil não trata do acesso à banda larga como um direito do cidadão. Esse acesso é hoje caro, ruim e limitado. Apenas 24% das residências no Brasil têm acesso à banda larga. Se tomarmos as classes D e E, esse número cai para 3%.
O valor médio pago pelos brasileiros para ter banda larga em casa corresponde a 4,58% da renda per capita no país. Mais que o dobro do México e mais de 9 vezes o valor dos Estados Unidos! Mesmo quem pode pagar compromete uma parte significativa de seu orçamento familiar com este investimento.
Isso deve mudar com o Plano Nacional de Banda Larga, mas mesmo o plano – que é bom, ressalte-se, mas insuficiente – não coloca a meta de universalização do serviço. Fala-se, no máximo, em massificação.
DS: Que desafios devem assumir os movimentos sociais no diálogo com a população sobre essa pauta?
JB: Os donos da mídia misturam maliciosamente qualquer proposta que vise à redução do seu poder com censura.
A defesa da liberdade de expressão deve ser uma bandeira dos setores progressistas, daqueles que nunca tiveram voz e sempre tiveram que lutar contra as opressões. Temos que juntá-la à bandeira do direito à comunicação, que implica obrigações para o Estado.
Quando se fala em controle social, o que queremos é justamente garantir que um serviço público, como é a radiodifusão, cumpra o interesse público. Na prática, isso significa garantir o controle da sociedade (e não do governo) sobre a regulamentação e as políticas públicas para o setor, sobre o serviço prestado e sobre o conteúdo exibido.
Exemplos concretos:
No primeiro caso, a existência de conselhos e conferências que determinem diretrizes para as políticas públicas.
No segundo caso, garantir ao cidadão, usuário desse serviço público, a possibilidade de se defender de serviços de má qualidade – é o caso dos cegos, por exemplo, que até hoje não contam com o serviço de audiodescrição e não têm para quem reclamar. Nem um bendito 0800!
No terceiro caso, relativo ao conteúdo, é preciso garantir o cumprimento da Constituição, que prevê a existência de meios legais para o cidadão se proteger de conteúdo que viole o disposto na própria Carta Magna. Por exemplo, se um meio de comunicação exibe conteúdo racista, eu preciso acionar o Ministério Público Federal ou entrar diretamente com um processo, o que me demanda tempo, dinheiro e conhecimento técnico. Não há uma via não judicial, rápida, que proteja o interesse do espectador. As emissoras fazem o que querem, com um poder muito desigual em relação ao espectador.
É importante destacar que controle social do conteúdo não tem nada a ver com censura. Tem a ver com garantir a responsabilidade da emissora por aquilo que ela já veiculou. Essa responsabilidade posterior é absolutamente democrática, prevista inclusive na Convenção Americana de Direitos Humanos. Isto é, existe a liberdade para dizer o que quiser, mas você pode ser punido se o que você disser representar violação a outros direitos humanos. Parece óbvio, não?
Saiba mais sobre a democracia na comunicação:
Fonte: Democracia Socialista