Hoje eu soube da existência de um projeto chamado Cinemagine. Alguém me pedia ajuda para divulgar o que intitulou “cinema para cegos”. Estranhei o nome e quis saber mais. Recebi um vídeo explicando. Trata-se de uma sessão de cinema com efeitos muito sofisticados: cadeiras que se movimentam em sincronia com os efeitos sonoros, atores que dramatizam as falas, dispositivos que borrifam água e odores e, por ser uma sessão especialmente projetada para cegos, não tem tela. Não tem filme, entenderam? Eu também não entendi. Na verdade eu me frustrei profundamente.
Clique na foto para assistir um vídeo sobre o Cinemagine.
Como nossa missão não é ser engenheiro de obra pronta ou palmatória do mundo, mas convencer, sensibilizar, trazer para perto e permitir que a voz das pessoas com deficiência se faça ouvir em nosso discurso e em nossas ações, enviei uma mensagem para a pessoa que queria minha divulgação, solicitando que ele pense na possibilidade de trazer a imagem de volta pro cinema, pois nossa principal luta hoje, no âmbito da “sétima arte” e com o advento da audiodescrição, é fazer as pessoas entenderem que as imagens pertencem ao universo dos cegos, mesmo que eles não consigam percebê-las pelos olhos. Pedi que avaliasse fazer um desdobramento do projeto Cinemagine, na perspectiva do desenho universal. O moço me disse que o lance é imaginar, pois, quando você usa a imaginação, pode ver o que quiser e esse seria o espírito do projeto Cinemagine.
Pesquisei um pouco mais sobre o Cinemagine e encontrei uma afirmação do idealizador que me deixou muito preocupada: "A expectativa é criar um entretenimento que seja pensado para quem não enxerga. Tudo que passa no cinema ou tv é para quem enxerga, excluindo quem não enxerga. A nossa ideia foi inverter essa lógica, criando algo especialmente para esse público. É um azar muito grande não enxergar, por que não deixar a vida dessas pessoas melhor?".
Eu não recomendo o projeto Cinemagine por diversos motivos e quero elencar os principais:
1. Cinema sem tela não é cinema. Se temos atores fazendo vozes e efeitos especiais podemos chamar até de contação de história, mas não de cinema.
2. Cinema para cegos está longe do que queremos de fato com nossa luta histórica por inclusão e participação. Um cinema exclusivo para cegos é uma afronta à proposta de inclusão. Queremos espaços para TODAS AS PESSOAS. Cegos namoram, têm amigos, família e fazem passeios com outras pessoas cegas ou que enxergam. Além disso, enxergar é um prazer que não pode ser negado ao vidente e o acesso à imagem, pelos recursos adequados, é uma garantia que não pode ser furtada do cego.
3. Inverter a lógica e excluir os videntes é birra que impede nosso progresso. Não temos tempo para sentimentos revanchistas. Nossa meta é avançar numa sociedade de paz, onde as diferenças são simplesmente respeitadas.
4. Não posso concordar com um projeto como o Cinemagine, que perpetua o mito do cego que “enxerga com o coração” ou vive em um mundo especial, criando imagens. Cegos não enxergam. Apenas isso. Mas eles raciocinam, preciso reafirmar. Aquilo que é entendido por um cego é fruto de suas diversas sensorialidades, igual a qualquer ser humano, e não de uma imaginação que cria uma compreensão fantasiosa da realidade.
5. Dom Pedro II, em 1854, ao conhecer o Sistema Braille e o que essa escrita permitia aos cegos, afirmou: "A cegueira já quase não é uma desgraça". Não posso admitir que, mais de 160 anos depois, um projeto com as características do Cinemagine nasça da percepção de que “ser cego é um grande azar”, mesmo eu admitindo que a cegueira constitui uma limitação que deve ser seriamente entendida e considerada.
Considero a tecnologia do Cinemagine inovadora, divertida, original. A metodologia e público-alvo, contudo, precisam ser repensados e ampliados. Continuo acreditando na arte como uma grande ferramenta de inclusão social, justamente porque nela cabem todas as representações. E desejamos que a vida seja assim também fora da telinha.
Patrícia Silva de Jesus [Patrícia Braille]
Coordenadora de Educação Especial do Estado da Bahia
Consultora de Produtos Editoriais Acessíveis
Autora do projeto #PraCegoVer: www.facebook.com/PraCegoVer
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9270615740740774
Fonte: enviado para o e-mail de contato do blog.